Saturday, March 11, 2006

01 - Olá

Colega minha, almadense mas não da Emídio, chamou -me de parte e disse-me: «Então, então, ouvi dizer que a sua escola faz anos, sempre vai até lá? Desses tempos de estudante que balanço é que faz?»

«Assim de repente faço dois», respondi.

«Dois? Como assim?»

Tentei explicar, faço dois balanços, um mau e um bom, não os consigo somar, ficarão distintos para sempre, não há nada a fazer. É que esse assunto são muitos assuntos e sobre eles tenho mixed feelings, como se diz agora em português corrente.

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Confesso que a questão me ficou a bailar no espírito, a de saber o que me aconteceu, que fiz eu em anos tão decisivos, o que foi isso de ter andado na escola, neste caso na Emídio Navarro nos princípios dos anos 60. Questão que se acentuou depois que à Escola voltei para a ver, vos ver, me ver. Exercícios impossíveis, ninguém regressa.

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Voltando ao saldo, talvez que vocês me possam ajudar nessa contabilidade, eu penso em voz alta e vocês arrumam no deve e no haver. Aposto que o resultado líquido vai ser o que disse, o que foi bom foi bom, distintamente bom, o que foi mau foi mau e não se recomenda de todo.

Da Emídio não tenho um retrato, tenho dois. Ou mais, que gente quando entra para a photomaton nunca sabe o que dela vai sair.

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(Para que me ponho eu a escrever estas coisas, eu que não escrevo nem estas nem outras? Para me recordar melhor? Para vos dar um abraço mais demorado? Porque um almoço não chega? Para ficarmos mais um bocado a conversar? Acho que sim. E seguramente para desta forma dar um abraço a um colega nosso muito especial que não pôde vir ao Encontro).

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Bom, agora começo eu com as questões metodológicas. É que este é um exercício algo perigoso, pegar nuns óculos de hoje e olhar para trás, para tempos tão diferentes. Tomemos então algumas precauções, assim uma espécie de código deontológico do rememorar.

Regra nº 1: Tentar olhar o passado sem pretender julgá-lo com critérios actuais. Sem retroactividade de juizo. Vamos a ver se consigo. Mas mesmo assim tentar avaliar o passado, aprender com ele.

Regra nº 2: Não confundir programas com os professores que os davam. É difícil mas devo tentar.

Regra nº 3: Não esquecer que falar da Escola desses tempos é ter de a recordar inserida, completamente imersa, num regime político que felizmente já não é o nosso. Respirava-se então, talvez mais na Escola do que em qualquer outra sede, os ares daqueles tempos de Salazar e Cerejeira, da Pide e do medo difuso, das excelências de papelão, do respeitinho servil tão bem retratado pelo Alexandre O’Neill. Se mesmo assim recordamos a Emídio com saudade é porque seguramente valeu a pena, talvez a Escola, talvez a nossa juventude, ou ambas.

Corolário: Não valeria a pena falar da minha Escola, e faço-o com amor podem crer, sem ver o que nela se veiculava de ideologia, diariamente destilada nas aulas. Ideologia que ainda hoje informa (e inquina) a percepção que tenho desses tempos e a consciência, nítida, de como ela determinava toda a Escola, o seu modo de funcionamento, os programas, o estilo e o discurso dos professores, a relação entre sexos, etc..
Não consigo, nem devo, adocicar memórias, adaptando -as a qualquer sentido, fruste, de conveniências.

Portugal Gigante, Portugal Imperial, da Exposição da Emídio


Também eu gostei muito de voltar a ver as capas dos livros da altura projectadas nas paredes do Ginásio. Mas enquanto as via rememorava igualmente o obscurantismo de tantos dos textos e verdades oficiais.

Regra nº 4: Perceber que o que conto pode ter importância apenas para mim, e que pode não significar nada de objectivo nas vossas vidas. Não tem portanto qualidade objectiva como contributo ao apelo que Carlos Abreu lançou, visível aqui no site dos 50 Anos da Emídio e que o colega João Aldeia tão minuciosamente vai mantendo (mas podem usar à vontade, se quiserem).

Regra nº 5: Evitar o maniqueísmo. Um exemplo: Tentando da moeda ver as duas faces, tenho de tirar o chapéu à visão estratégica do Estado Novo quanto a infraestruturas de ensino primário e secundário. Não há praticamente terreola que não tenha (ou não tivesse tido) a sua escola primária. Se depois era proibido ir mais além do mero "ler, escrever e contar" esse é outro assunto. Que nenhuma delas tolde a consciência de que a outra existiu. Neste domínio é fácil imaginar o que seriam muitos de nós, hoje, se a Emídio não tivesse existido.

Última regra (irra!) : Dado estarmos perante uma comemoração, do muito que vivi na Emídio e me lembro vou procurar encontrar somente aquilo que à mesa do almoço, convosco, vos poderia ter dito, em cavaqueira e enquanto ouvia as vossas impressões.

Nota: Por razões que não vêm aqui ao caso tenho a Escola, genericamente falando, em alta consideração – a Escola como sede de transmissão de conhecimentos, de desenvolvimento pessoal, de progresso civilizacional, de luta contra o obscurantismo, de preparação para a vida (ao mesmo tempo que ela já decorre).

Tenho para mim que poucas coisas deveriam ser tão valorizadas quanto a Escola, seja a pré-primária, seja a Faculdade, seja uma “simples” acção de formação profissional.

Não é em vão que no busto de D. António da Costa na escola que tem o seu nome em Almada, está a legenda “Elevai-vos pelo conhecimento” (ou semelhante, estou a citar de cor).

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Uma sala de aula, qualquer, deixa-me sempre optimista.
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Parece-me que o que se poderia fazer com a Escola está muito longe do que o que de facto se faz e acho que é menos do que o que já se fez, mas posso estar enganado ou mesmo ser injusto. Parece-me, assim à distância, que o assunto não é suficientemente valorizado pela sociedade em geral, talvez por ignorância de outros modelos ou mera desesperança. É assunto complexo, novelo com muitas pontas. Não há para ele soluções prontas a usar, mas parece-me razoavalmente votado a uma certa gestão corrente.

Este arrazoado todo é apenas para justificar alguns observações e sugestões que faço entre [ ], muito poucas, tentando trazer para o presente algum suposto benefício da experiência passada. Por vezes pequenos pormenores. E com óbvio risco de presunção, mas não de água benta.

Os meus amigos não são obrigados a pensar como eu, era o que faltava, isso nem antigamente.
E depois desculpem-me o estilo um pouco livre e confessional, mas estamos entre malta amiga.

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(Por acaso estava convencido de que tinha andado na Emídeo e não na Emídio. Consultado o cartão de estudante do 1º J vejo que estou enganado. Falsas memórias, falsas memórias. Isto começa mesmo mal).
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1 Comments:

Blogger Pedro Leitão said...

Excelente história!O que é que eu/a minha geração posso dizer da minha preparatória?Tão pouco...

11:24 PM  

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