Friday, November 17, 2023

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Saturday, March 11, 2006

01 - Olá

Colega minha, almadense mas não da Emídio, chamou -me de parte e disse-me: «Então, então, ouvi dizer que a sua escola faz anos, sempre vai até lá? Desses tempos de estudante que balanço é que faz?»

«Assim de repente faço dois», respondi.

«Dois? Como assim?»

Tentei explicar, faço dois balanços, um mau e um bom, não os consigo somar, ficarão distintos para sempre, não há nada a fazer. É que esse assunto são muitos assuntos e sobre eles tenho mixed feelings, como se diz agora em português corrente.

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Confesso que a questão me ficou a bailar no espírito, a de saber o que me aconteceu, que fiz eu em anos tão decisivos, o que foi isso de ter andado na escola, neste caso na Emídio Navarro nos princípios dos anos 60. Questão que se acentuou depois que à Escola voltei para a ver, vos ver, me ver. Exercícios impossíveis, ninguém regressa.

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Voltando ao saldo, talvez que vocês me possam ajudar nessa contabilidade, eu penso em voz alta e vocês arrumam no deve e no haver. Aposto que o resultado líquido vai ser o que disse, o que foi bom foi bom, distintamente bom, o que foi mau foi mau e não se recomenda de todo.

Da Emídio não tenho um retrato, tenho dois. Ou mais, que gente quando entra para a photomaton nunca sabe o que dela vai sair.

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(Para que me ponho eu a escrever estas coisas, eu que não escrevo nem estas nem outras? Para me recordar melhor? Para vos dar um abraço mais demorado? Porque um almoço não chega? Para ficarmos mais um bocado a conversar? Acho que sim. E seguramente para desta forma dar um abraço a um colega nosso muito especial que não pôde vir ao Encontro).

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Bom, agora começo eu com as questões metodológicas. É que este é um exercício algo perigoso, pegar nuns óculos de hoje e olhar para trás, para tempos tão diferentes. Tomemos então algumas precauções, assim uma espécie de código deontológico do rememorar.

Regra nº 1: Tentar olhar o passado sem pretender julgá-lo com critérios actuais. Sem retroactividade de juizo. Vamos a ver se consigo. Mas mesmo assim tentar avaliar o passado, aprender com ele.

Regra nº 2: Não confundir programas com os professores que os davam. É difícil mas devo tentar.

Regra nº 3: Não esquecer que falar da Escola desses tempos é ter de a recordar inserida, completamente imersa, num regime político que felizmente já não é o nosso. Respirava-se então, talvez mais na Escola do que em qualquer outra sede, os ares daqueles tempos de Salazar e Cerejeira, da Pide e do medo difuso, das excelências de papelão, do respeitinho servil tão bem retratado pelo Alexandre O’Neill. Se mesmo assim recordamos a Emídio com saudade é porque seguramente valeu a pena, talvez a Escola, talvez a nossa juventude, ou ambas.

Corolário: Não valeria a pena falar da minha Escola, e faço-o com amor podem crer, sem ver o que nela se veiculava de ideologia, diariamente destilada nas aulas. Ideologia que ainda hoje informa (e inquina) a percepção que tenho desses tempos e a consciência, nítida, de como ela determinava toda a Escola, o seu modo de funcionamento, os programas, o estilo e o discurso dos professores, a relação entre sexos, etc..
Não consigo, nem devo, adocicar memórias, adaptando -as a qualquer sentido, fruste, de conveniências.

Portugal Gigante, Portugal Imperial, da Exposição da Emídio


Também eu gostei muito de voltar a ver as capas dos livros da altura projectadas nas paredes do Ginásio. Mas enquanto as via rememorava igualmente o obscurantismo de tantos dos textos e verdades oficiais.

Regra nº 4: Perceber que o que conto pode ter importância apenas para mim, e que pode não significar nada de objectivo nas vossas vidas. Não tem portanto qualidade objectiva como contributo ao apelo que Carlos Abreu lançou, visível aqui no site dos 50 Anos da Emídio e que o colega João Aldeia tão minuciosamente vai mantendo (mas podem usar à vontade, se quiserem).

Regra nº 5: Evitar o maniqueísmo. Um exemplo: Tentando da moeda ver as duas faces, tenho de tirar o chapéu à visão estratégica do Estado Novo quanto a infraestruturas de ensino primário e secundário. Não há praticamente terreola que não tenha (ou não tivesse tido) a sua escola primária. Se depois era proibido ir mais além do mero "ler, escrever e contar" esse é outro assunto. Que nenhuma delas tolde a consciência de que a outra existiu. Neste domínio é fácil imaginar o que seriam muitos de nós, hoje, se a Emídio não tivesse existido.

Última regra (irra!) : Dado estarmos perante uma comemoração, do muito que vivi na Emídio e me lembro vou procurar encontrar somente aquilo que à mesa do almoço, convosco, vos poderia ter dito, em cavaqueira e enquanto ouvia as vossas impressões.

Nota: Por razões que não vêm aqui ao caso tenho a Escola, genericamente falando, em alta consideração – a Escola como sede de transmissão de conhecimentos, de desenvolvimento pessoal, de progresso civilizacional, de luta contra o obscurantismo, de preparação para a vida (ao mesmo tempo que ela já decorre).

Tenho para mim que poucas coisas deveriam ser tão valorizadas quanto a Escola, seja a pré-primária, seja a Faculdade, seja uma “simples” acção de formação profissional.

Não é em vão que no busto de D. António da Costa na escola que tem o seu nome em Almada, está a legenda “Elevai-vos pelo conhecimento” (ou semelhante, estou a citar de cor).

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Uma sala de aula, qualquer, deixa-me sempre optimista.
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Parece-me que o que se poderia fazer com a Escola está muito longe do que o que de facto se faz e acho que é menos do que o que já se fez, mas posso estar enganado ou mesmo ser injusto. Parece-me, assim à distância, que o assunto não é suficientemente valorizado pela sociedade em geral, talvez por ignorância de outros modelos ou mera desesperança. É assunto complexo, novelo com muitas pontas. Não há para ele soluções prontas a usar, mas parece-me razoavalmente votado a uma certa gestão corrente.

Este arrazoado todo é apenas para justificar alguns observações e sugestões que faço entre [ ], muito poucas, tentando trazer para o presente algum suposto benefício da experiência passada. Por vezes pequenos pormenores. E com óbvio risco de presunção, mas não de água benta.

Os meus amigos não são obrigados a pensar como eu, era o que faltava, isso nem antigamente.
E depois desculpem-me o estilo um pouco livre e confessional, mas estamos entre malta amiga.

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(Por acaso estava convencido de que tinha andado na Emídeo e não na Emídio. Consultado o cartão de estudante do 1º J vejo que estou enganado. Falsas memórias, falsas memórias. Isto começa mesmo mal).
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02 - A primeira vez


A primeira vez que vi a Emídio parece-me que ela ainda estava em obras. Levou-me lá o meu querido avô Malveiro.

Da exposição da Emídio

Saímos de casa (na Praça Gil Vicente) e andámos muitíssimo até que chegámos a um baldio, umas obras, ali nascia um edifício. Disse-me: Depois um dia vens para aqui estudar.

Confesso que não gostei. Aquilo pareceu-me uma ameaça, o anúncio de que seria para ali desterrado, era longíssimo de casa, à volta só havia lama e oliveiras. E tinha grades. Tudo aquilo me pareceu um pouco sinistro. Era o primeiro grande edificio que conhecia.
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Por acaso confesso que uns anos depois quando a hora chegou, a coisa piorou um pouco mais. Explico: Na primeira aula, na sala de Canto Coral, um anfiteatro onde no Ciclo também se dava Religião e Moral, o professor informou-nos que a partir daquele momento tínhamos deixado de ser crianças (eu tinha 10 anos) e que por essa razão nos passaria a tratar por Sr. e apelido!
Em vão nos entreolhámos tentanto perceber assim de repente quem seriam os senhores Fernandes, Castanheira, Teixeira, etc. que constavam da chamada.
Contei isto lá em casa e o meu pai com ar grave até deu a entender que aquela escola era mesmo a sério.
Por acaso aquilo não aguentou um dia. Muito rapidamente reapareceram sorridentes os Luíses, os Carlos e os Zés. Empate técnico, portanto. Mesmo assim sobrou um Teixeira de Almeida e um Reis Duarte, ainda estou para saber porquê. Coisas. Mas o abanão estava dado. Aquilo ia ser muito diferente da Escola Primária. E foi.
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Estive na Emídio vários anos. Fiz lá o Ciclo Preparatório (a António da Costa não tinha instalações suficientes), depois o Curso Geral do Comércio e finalmente a Secção de Admissão ao Instituto Comercial. Não levem a mal que dispense alguma cronologia, que confunda os cursos, os anos, os colegas. Foi na Emídio, é quanto (me) basta.
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03 - A arquitectura

Ponham-na lá do lado do Passivo.
Um edifício frio, uns corredores desolados. Foi assim que os senti. Depois um espaço para andebol e umas oficinas prenunciando a fábrica. E um ginásio, coisa que ainda hoje há escolas que não têm.
O Ciclo Preparatório era nuns barracões provisórios que duraram muitos anos.
A gente sabe que as escolas no Estado Novo (aliás qualquer edifício público, de Escola a Tribunal) eram assim. As instituições eram materializadas em edifícios e estes deviam demonstrar à saciedade a irrelevância do indivíduo face ao Estado. Mas décadas depois conheci outras escolas, bem mais novas, onde muitos destes erros estavam repetidos ou mesmo ampliados: Sem sítio para se conversar, escrever, ler.... Apenas salas de aulas e espaços incaracterísticos.
O Winston Churchill disse um dia que nós fazemos as ruas e as ruas fazem-nos a nós (big deal!), querendo com isto dizer que o meio que criamos acaba por nos condicionar. No caso da Emídio pareceu-me deste o início que ela me seria um sítio algo alheio, não acolhedor. Coisas que se sentem. O que vale é que dois putos a conversar depressa se esquecem do sítio onde estão.
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[Ainda hoje quando por qualquer razão entro numa escola faço-me sempre a pergunta-teste que é a seguinte:«Então aqui onde é que se pode estudar, i.e., aulas à parte, onde é que se pode abrir dois livros, tirar apontamentos em silêncio, com boa iluminação, ter alguma concentração, eventualmente abrir um computador? É na Biblioteca? Há recantos próprios? É onde?»
Assunto muito sério. As escolas não devem ser meros edifícios para aulas, até porque grande parte dos alunos não tem em casa condições de estudo: Uma sala de jantar com o televisor sempre ligado ou um quarto partilhado com irmãos, às vezes uma marquise, são estas as hipóteses mais frequentes. Senhores arquitectos, senhores pedagogos, a quem interessar. Devíamos sair da escola com hábitos de estudo e não apenas com matéria dada e TPC].
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Que não se infira que não gostava da escola, de ir à escola, de andar na escola. Gostava e muito.
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Já agora: Não conta para a contabilidade desse tempo mas conta para a do presente e por isso devo dizê-lo: Fui encontrar uma Emídio limpíssima e tão arranjada quanto possível. Melhor do que no meu tempo. Até árvores novas tem. Parabéns a quem lá trabalha. Não os conheço, estou à vontade para dizer isto, aliás uma coisa destas diria na mesma.
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04 - A deseducação sexual

Como se devem lembrar a escola não era laica. Obrigatoriamente tínhamos uma disciplina designada de Religião e Moral. Desses tempos recordo-me acima de tudo de que a tónica recaía na Moral e não propriamente na Religião (Católica). Confesso que teria preferido conhecer Religião ainda que a única possível, a do Estado, a que anulava e substituía qualquer outra.
Gostaria que não tivessem gasto esforços e tempo a tentar doutrinar-me e que os tivessem empregue no estudo das religiões do mesmo modo que história de arte ou música. Mas isso também não seria possível em aulas de R&M. Seria uma contradição em si.

Bom, voltando então à Moral era inevitável que o sexo fosse o seu alvo por excelência, o norte que conduzia o discurso de certas aulas.

Moral, condicionamento de comportamentos, deseducação sexual, chamem-lhe o que quiserem.

Isto não era explicitado mas era assim que funcionava. Esta deseducação sexual esteve entregue a uma tríade: Um padre, um médico e um professor. Os dois primeiros davam um programa, o terceiro foi sem querer. Explico.
Primeiro o padre. Não me estou a referir ao primeiro professor de Religião e Moral que tive ainda no Ciclo Preparatório, talvez padre talvez não, disciplina em que me ensinaram que uma dado caso de cegueira tinha sido resolvido com a queda certeira e providencial de um excremento de pomba sobre a vista necessitada. Um milagre, portanto. Aquilo divertiu-me e não me convenceu. Et pour cause, tudo o que se lhe seguiu me entrou por um ouvido e saíu pelo outro. Aos 10 anos é fácil de fazer.
Dessas primeiras aulas, já agora, recordo apenas um outro evento e por acaso muito agradável: Uma vez o professor rematou uma prelecção sua com a informação da fonte: “Segunda a Timóteo, versículo 3-16” (desculpem-me se não é assim que se diz, mas é exactamente assim que a recordo). E não é que nesse momento entrou ali, em carne e osso o Sr Timóteo com o livro de ponto debaixo do braço? Uma gargalhada geral a sublinhar mais um milagre desta vez à nossa medida.

O Sr Timóteo era um gajo porreiro, mandava na gente sempre bem disposto. E por isso o quisemos na fotografia de turma.

Regressando à Deseducação Sexual: Falo portanto do segundo padre. Pessoa simpática, homem afável no trato e demonstrando viva simpatia por nós. Não é bem dele que falo, é mais do programa.
Acontece que servia grandes prédicas quanto à natureza “nefanda” (palavra aprendida nessas aulas) do sexo não reprodutivo, do sexo não estritamente "necessário", "do sexo de não casados". Havia no ar, nessas aulas e noutras, havia nesse tempo em suma, uma preocupação latente de inculcamento da culpa como princípio condicionador de comportamentos. Privilegiava-se a obediência a códigos de conduta exteriores ao indivíduo e à sua responsabilidade pessoal, a que aliás não se apelava. É a minha leitura, reconheço que existem outras.

Por acaso constato hoje que quando se referia à recomendada relação sexo-casamento a parte "sexo" despertava a nossa atenção, a parte "casamento" népias.
Penso, assim à distância que foi tempo perdido.

Bom, agora o médico: Dava uma cadeira chamada Higiene. Ensinou algumas coisas úteis acerca de doenças, vacinações, ressuscitação cárdio-respiratória, garrotes para homorragias e coisas assim. Que eu apontava no caderno e tentava aprender.
Mas um dia quando o programa chegou ao aparelho reprodutor masculino (o feminino não existia) logo ali chamou à colação todo um rol de doenças venéreas. E deste modo patologizou o sexo e seus apêndices naturais. E com que requinte: Trouxe para a aula uns instrumentos cirúrgicos, tipo cânula de aço inox. Explicou que eram destinados a subir pela uretra. Dentro destas cânulas deslizariam depois umas lâminas cujo corte visava permitir a micção a certos doentes mais entupidos. Com nojo e horror lá íamos aguentando aquilo.
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Deixem-me contar-vos esta, que se calhar só voltamos a falar no próximo cinquentenário, em 2056, e eu nesse dia posso estar com muito sono: Ia a aula quase terminada e versava-se a reprodução. Um colega nosso, dos maiores, o B., apresentava nesse dia uma estranha e crescente incomodidade, como se uma grande preocupação lhe toldasse a atenção. No fim, já com a campainha a tocar e a malta a fechar os cadernos, encheu-se de coragem e perguntou muito alto, sem conseguir contolar a voz, se as mulheres podiam engravidar pela boca. A resposta veio e teve o condão de o acalmar instantaneamente. Ainda o pude ver a sair porta fora muito muito aliviado.

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Dessa disciplina de Higiene retive os termos “gonorreia”, “cancro mole” e “cancro duro”. Cancro, nesse tempo, era quase sempre incurável, estão a ver o clima.

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Finalmente o professor. De História. Era apenas um homem muito perturbado a necessitar de tratamento. Falava em coprolalia constante, transformando todos os eventos da História em histórias de cama, prostituição, incesto, faca e alguidar. Um puro caso patológico ou de mau recrutamento docente. Dessas aulas retenho apenas o nome de Ana Bolena. (Para que falo eu nisto? Secreta esperança que não se repita).
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Conselho Pedagógico não sei se havia, se já se usava. Se sim, não funcionou.
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É curioso constatar que licenciosidades destas poderiam ter tido um efeito contrário às aulas de R&M ou de Higiene, pela descontracção aparente, pelo registo mais livre. Pelo contrário, acabaram por apontar na mesma direcção, a de sexo como coisa indigna. Natural e indigna.

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O que nos valia era o nosso poder subversivo, destruidor. Com o professor de História riamo-nos alarvemente e passávamos à frente. Com o padre, eu pelo menos concentrava-me no seu cigarro. Ele fumava nas aulas (sim nas aulas) uns cigarritos do tipo Provisórios ou Definitivos, marcas baratas, sem filtro. E como falava falava falava acabava por se esquecer de os chupar. De modo que a cinza lá ia crescendo. A certa altura, eu e outros em patente ansiedade, já só nos preocupávamos em saber se a cinza se iria estatelar no estrado, na mesa ou na primeira fila. Esta preocupação e outros pensamentos mais importantes faziam com que a aula se passasse.

Uma vez, com muita piada, defendeu convicto o tabaco dizendo que tinha vitamina PP. Alguém lá atrás adiantou imediatamente a palavra "papel". Era assim.

Acho que uma vez ele (ou o anterior professor, não sei já) nos quis hipnotizar. [Senhores do Ministério, não há uma lei contra estes comportamentos? É que do meu conhecimento são já vários os casos de padres que gostam de fazer esta gracinha e com isso evidenciar pretensos poderes ocultos. Faz parte de um programa? Isto é aceitável? A mim parece-me tratar-se de falta de respeito para com miúdos].

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O tratamento dos domínos da chamada Educação Sexual era abordado pelo lado do inconsciente, não da informação. Procurava-se condicionar comportamentos, inculcar a ideia de doença e de pecado, havendo para cada uma destas disciplinas o seu mestre especializado. Ainda deve ser assim em muito lado.

É por estas e por outas que por vezes penso que é bom que a Escola não tenha na vida de crianças o peso e a importância que já teve e que os jovens sejam formados como são, a partir de referências múltiplas e pouco controláveis, sempre discutíveis.

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Desses tempos tão cinzentos e vis foi a Escola tão vítima quanto nós. Em tudo o que aqui digo tenho isso presente. Mas foi na Emídio que aconteceram, não há volta a dar-lhe. É também isso que recordo agora que a visito. Está escrito nas paredes.

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Havia uma escada para as raparigas e outra para os rapazes, alas separadas. Qualquer troca de palavras ou bilhetes dava direito a que nos tirassem os números para uma admoestação qualquer.

Enquanto isso, "lá fora" explodiam os Beatles. Primeiro na Radio Luxemburg que ouvíamos em Onda Média, depois, incontroláveis, na nossa telefonia. E cantavam "Please please me". A música foi uma higiene.

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Diz-se que "de pequenino se torce o pepino". Pensei durante muitos anos que isso até era uma coisa boa, hoje nem sempre penso assim. Acho que a escola deve ser o mais possível neutra para que cada um possa evoluir na medida das suas capacidades e circunstâncias, i.e. que a escola não nos modele exageramente. Daí gostar da escola laica (escola agnóstica, a que se interroga, melhor dizendo).
Pensava eu nisto quando tropeço numa revista que não conhecia, O Tripeiro, em número razoavelmente dedicado aos 100 anos do nascimento do Professor Agostinho da Silva. No página 30 faz-se um pequeno elenco de pensamentos seus e a certa altura diz-se:

«O tal imenso desafio que se nos apresenta é o de educar o povo, insistindo em que educar não é levar ninguém a ser isto ou aquilo, não é tentar influir de qualquer modo em sua orientação futura, mas dar meios de expressão à sua capacidade criadora e de comunicação, quer ela se exerça lendo e escrevendo, quer manualmente num ofício, e sem que se separe uma actividade de outra.»

05 - Os intervalos

Ponham-nos do lado do Activo. Era nos intervalos que convivíamos (conviver, viver com). Era nos intervalos que trocávamos os cromos, que discutíamos tudo e mais alguma coisa, que aprendíamos os nomes uns dos outros, que inventávamos jogos, que nos relacionávamos enquanto pessoas.

[Senhores pedagogos, os intervalos foram para mim em muitos aspectos mais importantes do que a maioria das aulas. Na feitura de horários, sff não fazer nada, a não ser alargá-los. Por favor não pensem sequer em "programá-los", "enquadrá-los". Ou são livres ou não são intervalos . Mais, uma aula, boa ou má, é como uma fotografia, tem de ter uma moldura que a separe de outra ou do ruído envolvente. É como uma música que merece sempre um pouco de silêncio antes e depois. Já tive muitos horários em que só havia tempo para se sair de uma e entrar noutra. Errado! Após uma aula convém que respiremos, que falemos, convém que pensemos, que nos espreguicemos. Não ter intervalo é o mesmo que apagar antes de tempo o quadro da aula anterior].

*

Ah, faltar à aula de Desenho, duas horas chatérrimas de desenho à vista, nas quais não saía mais que uma jarra torta, emporcalhada e sempre com sombra do lado direito. Jarra que nunca endireitava mesmo se ensaiada vezes sem conta lá em casa, com o meu pai a ajudar e tudo.

Ah, Faltar à aula de Desenho, duas curtas horas, ir para as traseiras das Oficinas comer batatas fritas, ao sol. Ainda hoje poucos luxos se lhe comparam.

Variante de contingência: Comer batatas fritas dentro da aula, encolhido para não me verem, uma espécie de intervalo clandestino. (Agora percebo por que é que o desenho da jarra ficava emporcalhado).

Podem pôr no Activo essas aulas de Desenho, as das batatas fritas e as das gazetas. As outras não.

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Naquele primeiro ano do Ciclo Preparatório a 2ª feira foi sempre o dia da semana que mais me rendeu.

06 - A Malta


Clique na fotografia para a ampliar

*Luís Filipe, Jaime, Luís Fernando, Piedade, Álvaro, Augusto, Madeira, Valério, Gil, Carlos Branquinho, Ganhão e Sr Timóteo
* Durão, Renato, Castanheira, Agostinho, Brighton, ???, Chouriço, Sota, Nunes de Oliveira, Dores, Prazeres,
* António Joaquim, Bandeira, Martins, Jorge, Caldeira, Guerreiro, Lima, Gil, Vieira de Almeida e Reis Duarte



Devo à minha mãe o ter guardado tão cuidadosamente esta fotografia.


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O melhor do mundo foi e será sempre a malta. Aquela maltosa indecente, aquela gostosa trupe que ninguém tinha mão nela.

Alguns factos: Nunca fui roubado. Nunca me bateram (andar à pancada é uma coisa, agredirem-me teria sido outra). Os matulões (o Paiva, o Luís Fernando, o Zé Colmeia) protegiam os mais pequenos. Não me lembro de ofensas graves. Lembro-me sim de uma amizade latente, intrínseca ao facto de sermos colegas, mesmo que de outras turmas, companheiros. Que bom. Navalhas só um ou outro canivete para descascar a fruta.
Um grande abraço para vocês, sacanagem geral.


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Gosto muito de olhar para esta fotografia eu que não a via literalmente há décadas. Acho que com um pouco de cuidado e tentando afastar a emoção pode-se ver em sucessivas camadas as nossas particulares origens, as nossas famílias, as suas prováveis profissões, os sonhos dos nossos pais.


Olhemos para o nosso cabelo, o sorriso ou falta dele, o ar que púnhamos, os sapatos que calçávamos. Nisso tudo veremos o que fomos e a Almada de 1961. Terra de imigração interna acelerada, muita dela de camponezes em proletarização que procuravam em Lisboa, no Seixal, no Barreiro uma nova vida. Em minoria, alguns empregados de escritório e um outro dono de mercearia ou mesmo pessoa mais abastada.


E nós, os seus retratos, posando para o retrato. Está lá tudo.


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(Já não fazia ideia de quão putos nós éramos).

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Fomos para a escola com um pedido implícito dos nosso pais: "Que não fiquem analfabetos". Acho que se conseguiu, que a Emídio Navarro conseguiu.

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Bom, deixem-me mudar de registo, arregaçar as mangas e tentar resolver aqui uns pequenos problemas que tenho atrasados. Contabilidade pessoal.


Da malta vou escolher apenas três, por circunstâncias para mim muito especiais que certamente me redimirão da iniciativa. E sem desconsideração por todos os outros a quem (comovidamente) dou um abraço.


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O Lima
Com este eu quero ajustar contas, mesmo sabendo que por este meio ele não se pode defender. Santa paciência, hoje não há contraditório.
Não o vi no almoço se não tinha-o feito logo ali, assim vai em diferido, em câmara lenta, como na bola. É do Lima que falo.

A fotografia talvez que não lhe faça juz completamente. Quem a vê dirá que se trata de uma criança. Sim, claro, mas. Não nos deixemos iludir completamente pelas aparências.


Atenção que este gajo era especial (e espero que continue a sê-lo). Inteligente e marrão - o que era mais que suficiente para que concitasse pequenas irritações alheias, digamos que o Lima era um alvo fácil para as nossas pequenas crueldades.


Tive com ele muitas discussões. Era seu amigo, dos mais chegados. Simplesmente discutíamos. Vamos ao ajuste de contas, que a discussão ficou a meio.


O problema do Lima é que em vez de jogar à bola, lia. Em vez disto, daquilo e daqueloutro, lia. Em vez de tudo, lia. E à medida que crescia mais se lhe entranhava o vício. Lia, informava-se e opinava. E como se não bastasse decidia-se a emprestar-nos livros, impingia-nos autores, metia-nos recensões debaixo do braço, suplementos literários, revistas, tudo o que tivesse letras. Chegava a levar-nos para a Biblioteca da Cooperativa Piedense. Por aí podem vocês ver do que a casa gastava. E ao longo daqueles curtos anos foi-nos pegando o vício de tal forma que posso considerar que devo em parte ao Lima o facto de ter conhecido o Samuel Becket, o O. Henry, a Luiza Neto Jorge, o Jorge Luís Borges, o António Ramos Rosa, o Carlos Oliveira, a Ana Hatherly, etc. etc. etc.. E tudo isto na idade que vale a pena.

E íamos a exposições. Batíamos as galerias de arte todas de Lisboa (em Almada não havia, como hoje não há). Lembro-me muito bem de ter passado longos longos minutos frente aos sprays do Noronha da Costa, coisa que se faz bem a qualquer ser humano, então a um puto de 13 ou 14 anos aluno do Curso Geral do Comércio em Almada...


Ao Lima (e a outros) ficámos a dever algumas programações do Cine-Clube da Cova da Piedade, aquelas sessões de verão, na esplanada. Por lá passaram o Rossellini, o Antonioni, ...

Numa das últimas vezes que o vi (já lá vão muitos anos, ainda antes do 25/4) penso que andava o Lima a compor ou a distribuir uma revista policopiada a stencil (chamada Grifo?). E ainda não há muito tempo li um livro do Sam Shepard que me pareceu muito bem traduzido. Procurando o nome do tradutor encontrei um muito próximo do que lhe conheço. Foste tu, Lima?


Nunca lhe agradeci estas coisas todas, queria fazê-lo agora. Obrigado pá. Um grande abraço.
Pronto, era só isto.

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O Gil
Amigo e parceiro de muitos anos. Sempre muito vem disposto. Bom na Matemática e no Bilhar Grande.
Não estou a brincar. Sempre achei o bilhar uma fonte de ensinamentos para a Geometria, a Física e a Astronomia, pelo menos. E descontrai.
A sensibilização para a inércia, para a velocidade, para o ângulo, a reflexão, a trajectória, a colisão e a força resultante... Há aulas de Física que podiam ser dadas no salão de bilhar mais próximo e com a vantagem da experimentação, das imperiais e dos tremoços.


Para quem não conhece, garanto: O bilhar tem uma elegância formal próxima da da geometria.


Ora o Gil tinha imensa facilidade em todas as disciplinas. Mas na Matemática e no Bilhar, aí então brilhava. No Bilhar Às Três Tabelas, para ser mais preciso, assim escrito com maiúsculas como este jogo merece ser mencionado. Nesta disciplina em que o quadro é de pano verde e também se usa giz. Era um craque em qualquer estádio das várias aldeias bilharísticas que existiam em Almada: Café Central, Nevada, Crisógono...


Eu lá ia dando umas tacadas no snooker, sempre eram mais bolas, muitos buracos, mais propenso ao acaso e a um certo caos. Preferências.


Do Gil deixem-me contar esta, para vocês verem como tenho razão: Houve um ano em que tivemos um excelente professor a Matemática. Para vergonha minha não me lembro do seu nome. Era coloquial, o programa avançava e sobrava sempre tempo para falarmos para além da disciplina. Houve um dia em que extra-programa decidiu introduzir-nos no sistema binário. Lá explicou que dispúnhamos apenas do zero e do um, etc. etc.. E a certa altura, depois de nos ter explicado sumariamente o tema quis confrontar-nos com algumas questões:


Primeira: Quantos são 0+0 no sistema binário?

Lá dissemos que aquilo só podia ser zero, fosse em que sistema de numeração fosse, etc. e tal. Muito bem.

Segunda questão. E 0+1? Lá acertámos de novo. Óptimo.


Finalmente a pergunta fatídica: E 1+1 ? Pois só o Gil disse correctamente “10” (que neste caso se lê “um zero base dois”). Estão a ver, estão a ver, um gajo destes tinha forçosamente de ser bom nas 3 tabelas.


Um grande abraço, pá.


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O Álvaro
Deixei o Álvaro para o fim. Porque me custa e não tenho palavras. E não há alternativa às palavras.
Como eu gostaria de te poder perguntar: Que é feito de ti, pá?


Para quem não o conheceu posso dizer que o Álvaro não era como nós. Nós éramos muito ou pouco inteligentes, cada um à sua maneira, mas razoavelmente toscos. Enquanto isso, o Álvaro era brilhante. Nos pontos só tinha vintes e dezanoves. Abaixo disso nem se dignava olhar para a folha do exercício, ficava ofendido consigo próprio e não se perdoava.


*
O Álvaro que quando chegou à Primária já sabia ler.

*
Nós estudávamos a matéria pelos livros, ele escrevia a matéria que muito bem entendia, directamente da sua cabeça para pequenos livros.

Que será feito dessas micro-enciclopédias que ele escrevia, ilustrava e encadernava? Minúsculas condensações de conhecimento onde era possível encontrar a descrição orográfica do Rio Nilo, a altura do vulcão Popocatepetl, a distância Terra-Sol, o método de conversão KM-milhas ou graus centígrados-Fahrenheit,...


*

Só para terem uma ideia: Uma vez no anfiteatro da C-3 estava a decorrer uma aula de Ciências quando o Álvaro, subitamente saído de outro planeta, se levanta e aponta o dedo indicador à professora. Ele tinha um indicador comprido e curvo, como na Criação de Adão do Miguelângelo e espetava-o no peito das pessoas em interpelações sem aviso prévio. Desta vez dispara muito simplesmente a seguinte: Qual é a diferença entre fusão nuclear e fissão nuclear?

A pergunta era honesta, ele estava mesmo interessado em saber. Mas pobre professora.


*
Com o Álvaro tinha em comum a paixão pela astronomia. Deitavamo -nos de costas no chão olhando para o céu e fazíamos a revisão da matéria dada pelo cosmonauta Gagarine. Tanta vez.

*

Por vezes deixava-nos muito preocupados. Discutia com o professor de Inglês e abalava porta fora. E por isso somava faltas.
Esteve quase a chumbar por faltas disciplinares o aluno mais brilhante da sua geração.
*
Sempre achei que o Álvaro estava um pouco a mais em todo o lado, um não caber no ar que tinha para respirar. Havia nele o comportamento de um dextro que se movia num mundo feito para canhotos.
*
Tenho mesmo muita pena de não te poder abraçar. É o que mais me custa nesta história dos 50 anos da Emídio.
*
*

Lembro-me muito bem da voz do Álvaro, ouço-a.

Posso por isso perguntar-me: Que é feito de ti, pá?
*

08 - A Ginástica

As aulas de Ginástica foram dos piores sacrifícios que fiz na Emídio. Mas deu-me para ver que cada um é para o que nasce.
No andebol, enquanto o Afonso, o Monteiro ou o Dias pegavam na bola de andebol com uma só mão e mergulhavam na pequena área lançando-a com violência e estilo sobre o pobre do guarda-redes que estivesse de serviço (muitas boladas levou o meu grande amigo Castanheira), eu lá tinha que a agarrar com as duas mãos como se estivéssemos no básquete.
Por essas e por outras é que a minha quotação era, digamos, algo baixa e as equipas quando se formavam faziam de conta que não me viam.

Depois, o cansaço de andar a correr naquele imenso ginásio, ao fim da primeira volta já não podia com os bofes. E as cordas? Tentar subir à corda sempre com alguém cá em baixo a dizer “Vá lá, despacha-te” e o professor a gritar “Já lá devia estar!”, que embora fosse frase automática que lhe ouvi dezenas de vezes provocava algum efeito anímico mas nenhuma força muscular.

Acresce que as miúdas adora- ravam os que jogavam à séria, em especial os heróis dos jogos Comércio - Indústria, os que marcavam golos. Os grandes. (De certo modo acho que cresci quando já não valia a pena, adiante). O que me remetia para uma preocupante secundarização.
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Na Emídio aprendi que praticamente só namorava quem marcava golos.
De certo modo continua a ser assim, os jogos é que mudam.
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E no fim tínhamos de tomar duche. O professor João Coutinho, a quem ternamente apelidámos de Funquecas, ia ele próprio, himself, ao balneário, ver se de facto estávamos todos debaixo da água gelada ou se simplesmente a tínhamos deixado a correr para disfarçar. Este professor, diga-se, era muito respeitado, tinha uma autoridade natural que em grande parte lhe vinha da competência.

Quando dividia a turma em pequenos grupos que punha a correr à volta da escola naqueles horríveis dias de calor, escolhia-me a mim para cabeça de um desses grupos por forma a que fosse eu, o mais pequeno, a marcar o ritmo.


Foto do professor Coutinho pesquisada e cedida pelo colega João Aldeia a quem agradeço a amabilidade


Deixem-me só contar esta: O meu respeito e consideração pelo professor Funquecas era tão grande que quando uma vez ele nos cronometrou nuns quaisquer 200 metros ou semelhante, ao cortar a meta ouvi da sua boca a informação “dois-dez-cinco”. Não obstante ter chegado em último lugar senti-me medalhado!


Nunca mais esqueci este tempo de dois minutos, dez segundos e cinco centésimos. Nem sei já a que distância correspondeu. Mas ainda hoje e já cinquentão, quando esporadicamente dou umas corridinhas na Costa, dou por mim a pensar nestes dois-dez-cinco e sempre aguento um pouco mais.

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Gostaria muito que ainda fosse possível dar um abraço ao professor Funquecas.


Deixo-o aqui para o caso de a sua memória o querer receber.

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07 - A Bufa

Impossível não falar da Bufa, vulgo Mocidade Portuguesa, ou vice-versa, tanto faz. Um Estado dentro do Estado. Uma segunda Escola dentro da Escola. Uma coisa triste que levávamos a brincar.
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Eles tinham aeromodelismo, tabuleiros de xadrez e filmes dos astronautas (americanos). Eu como gostava destes três assuntos uma vez apanhei a sala da Bufa aberta e resolvi entrar. Não eram passados 10 segundos quando me berraram uma qualquer ordem de expulsão, marcial. Nunca mais lá entrei. Mas nos curtos momentos em que lá estive pude ver e lembro-me com nitidez, que havia uma secretária, digamos, de Director, com bandeirinhas, ofícios e carimbos. Não me admirava que em certas matérias o comandante daquilo mandasse mais que o Director da Escola ou que pelo menos este tivesse que afinar a voz pelo diapasão que aquele representava, e sem fífias.






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Da Exposição

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A inscrição na Mocidade Portuguesa era obrigatória, isto é, automática. De modo que aos sábados à tarde lá andávamos nós a marchar num ridículo simulacro de pelotões, regimentos e companhias. Destrambelhados soldadinhos de chumbo.


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Mais uma das minhas raizes quadradas por resolver: Por que razão na Bufa as ordens eram sempre dadas com sotaque algarvio? “Esquerde, direite, esquerde, direite, esquerde, ...., esquerde, ...., esquerde..., esquerde...”.

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Havia uma espécie de mandamentos da Bufa que tínhamos de saber de cor. A todo o momento podíamos ser interpelados por algum "graduado" posto o que tínhamos de estar em condições de desbobinar a ladainha, mais ou menos como hoje em dia temos de exibir o bilhete do Metro se o revisor nos abordar. Nunca os aprendi, nunca fui apanhado.

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Um dia o Director entrou numa aula, de rompante como era seu costume. Professor e alunos saltaram como uma mola. Com o Director vinham duas pessoas, julgo que do Ministério. Informam-nos que vamos ser medidos. Exactamente. E passou a explicar que sermos membros da Mocidade Portuguesa implicava uma certa dignidade que não estaria a ser respeitada - tínhamos de passar a usar farda! E para isso iam tirar-nos as medidas.

Confesso que a coisa animou a malta. Nenhum de nós tinha farda, andávamos todos a marchar na mais perfeita pinderiquice. Colegas meus havia que usavam sapatos só porque uns anos antes tinha passado a ser proibido andar descalço. Eu próprio andava de botas de borracha para poder atravessar o inverno de lama da Quinta dos Caranguejais, sítio onde se juntavam três bairros de lata. Estão portanto a ver o aprumo daquela tropa fandanga. Portanto tínhamos de passar a andar de farda, isso de se andar de bracinho no ar à civil ia acabar.


Nos dias que se seguiram muito especulámos nós sobre o significado de cada um dos componentes da farda, toda ela cheia de berloques e cores simbólicas de tudo e de nada. O cinto, esse, tinha um “S” que parece que queria dizer “Salazar” mas que um colega nosso mais douto na matéria, talvez mesmo já um estudioso e candidato a uma carreira no ramo (já vamos ver o destino que teve) nos elucidou significar “Servir Sempre Salazar”, três esses valiam mais do que um.


O problema é que o tempo foi passando e as fardas não chegavam. Pelo contrário, um belo dia o que chegou à Escola foi a conta das fardas, que elas não seriam feitas sem que antes cada um de nós esportulasse a respectiva quantia. Lá em casa disseram-me logo que não havia dinheiro para mocidades portuguesas e que era assunto arrumado. Nas outras, o mesmo. Houve pais que ainda se deslocaram à Emídio perguntando se podiam pagar a prestações. Que não, que não podia ser. E a coisa entrou num estranho impasse até que esmoreceu e assim ficou.


Ficou assim, não: Houve uma única excepção, a do nosso colega mais letrado em Juventudes. Esse viu a sua farda ser paga, feita e entregue, um brinco. Mas nós é que beneficiámos com o facto. É que passou a ser um prazer muito grande tê-lo ali a desfilar no nosso seio, nós uns javardolas e ele todo aprumado tão diferente de nós, qual pardalito entre corvos!


Explico melhor: Diferenças destas dentro da mesma Companhia acabam inevitavelmente por provocar algumas reacções, nomeadamente verbais. Vossas Excelências se não estiveram lá não podem fazer ideia dos epítetos que surdamente lhe passámos a lançar enquanto aplicadamente volvíamos à esquerde e à direite sem que o Chefe de Quina nos ouvisse.

Para vossa ilustração vos direi apenas que as pequenas mensagens que os de samarra e camisola dirigiam discretamente ao colega de farda versavam, quase todas elas, o conceito genérico de fazedor de panelas, nas versões culta, popular e respectivas declinações. Regionalismos, vários e mui espontâneos, com etimologia no léxico de Porto Brandão, Mutela, Margueira, Pragal, Caramujeira, Costas de Cão, etc. etc.. Coisa elevadíssima.


Por acaso nada daquilo tinha intenção de ofender. Na segunda feira seguinte, já sem farda, éramos amigos outra vez.


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Muito mais tarde tive oportunidade de ler O Tambor, do Günther Grass. Há lá passagens que são isto mesmo, situações em que militarismo, estupidez e absurdo se parecem atrair e anular reciprocamente.

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A ordem final era a mais esperada: DES-TRO-ÇAR! E lá corríamos nós que nem uns doidos para longe de toda aquela insanidade a caminho da camioneta que nos levasse para casa, que o sábado estava quase no fim.



«Marcelo Caetano distribui fardas às novas Juventudes Portuguesas em cerimónia solene. 27-4-1942» Foto retirada daqui.

Quando uma vez por mês era mandado para o sacrifício do barbeiro aproveitava sempre para folhear os Séculos Ilustrados. E ali, sim, podia-se ver o que eram juventudes a sério. Em fotografias de grande dramatismo desfilavam as Franquistas que não só tinham farda como também espingarda e tudo e por isso evidenciavam um porte garboso, eram dignas dos seus maiores e defensoras dos sacrossantos valores da Pátria (letra e música da época).
A gente hoje ri, aquilo já passou, ou parece ter passado, mas a MP era um peça num puzzle sinistro que incluía a PIDE, a Legião, a censura, o Tarrafal e uma miríade de delatores um pouco por todo o lado...


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Quanto à Mocidade Portuguesa Feminina, confesso que nunca pensei muito nela. Pelo menos nunca ouvi a expressão que seria lógico que tivesse ouvido, Bufa Feminina. Para me informar melhor sobre o assunto perguntei à internet e ela respondeu-me com uma súmula interessante, aqui e os os Regulamentos aqui.


Vale a pena ler para perceber a época, antes que as nossas cabecinhas prescrevam de vez.


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Do hino da Bufa confesso que só aprendi as primeiras e a última estrofes. O resto trauteava. As primeiras rezavam assim:
« Lá vamos, cantando e rindo / Levados, levados, sim»
São versos que ainda hoje me permito aplicar a torto e a direito e com muita propriedade, podem crer. Muito útil.

Com o último verso é que arranjei uma pequena questão particular, uma daquelas raizes quadradas pessoais, das muitas que trago no bolso, que a vida não é fácil.

Diz a estrofe: «À Mocidade que passa». Ora eu tinha dúvidas sobre o verdadeir o significado da última palavra, ali inscrita no contexto que conhecia, mas aguentei-me e nunca perguntei a ninguém. Quando tinha de a cantar sentia-me sempre dividido sobre se estaria a subinhar o fenómeno do envelhe- cimento, da mocidade que passa para dar lugar a outras idades, se ao facto de termos a mocidade portuguesa sempre a passar, fisicamente a passar, nos recintos, nas ruas, nas paradas. É que naquele tempo a Bufa desfilava por tudo e por nada, passava debaixo dos nossos narizes fosse ele procissão (pegando nos andores) fossem beija-mãos a governantes, dias santos, etc.. Eles passavam mesmo. Praticamente não faziam mais nada.


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Um pequeno país que marcava passo produzia um outro, de miniatura, que fazia que avançava.
Hino completo aqui .

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O que aqui conto é apenas o mais risível. Não é o momento para coisas mais sérias, que também as houve. E mesmo assim se as conto, primeiro é porque existiram. Mais grave que esquecermos é fingirmos já termos esquecido. Em segundo lugar, conto ir amanhã ao Concerto da Emídio ouvir o Mozart e as harmonizações do Lopes Graça no Auditório que tem o seu nome.

Não se pode ir ouvir Lopes Graça e ao mesmo tempo esquecer ou desvalorizar.

Já agora: Quando o Fernando Lopes Graça soube que o seu nome constava de uma lista negra da RTP segundo a qual não podia ser filmado, escreveu uma carta aberta à televisão, publicada na Seara Nova, proibindo a estação de o filmar fosse a que pretexto fosse. A música dele é também disto que fala e é assim que eu a vou ouvir.
A Mocidade Portuguesa parecia uma fantochada juvenil mas não era.

09 - Canto Coral

Foram dois anos perdidos. Trocava-os de bom grado por um semestre de qualquer coisa parecida com Educação Musical.

Num deles uma senhora professora pedalava pedalava num órgão de ar e punha-nos a cantar modinhas portuguesas do tipo “Ó Rosa Arredonda a Saia”. Na escola, na rádio e na televisão era o que passava, misturado com as Chulas e os Corridinhos e embrulhado com a mediocridade mais completa do chamada nacional-cancionetismo (termo cunhado salvo erro por João Paulo Guerra). A tal ponto que ainda hoje tenho inibição em ouvir ou ver tudo o que me cheire a folclore português, o que é uma pena, um crime.
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Fado, esse então só em doses homeopáticas.
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Ressalvo um dos professores que um dia, quando soube que estávamos a fazer um jornal de turma (O Ciclone) se propôs compor um hino para o jornal, e compôs. Eu achei aquilo um portento.
Pequenas coisas que fazem a diferença. Coisa de certos professores e não de outros.
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Monday, March 06, 2006

10 - As oficinas

Excelentes. A camaradagem de fábrica, os Mestres muito dedicados, todo o ar de coisa concreta que seria feita com as mãos.
Fiz muito pouco, passei o tempo quase todo a conversar com o meu colega de bancada, o Ganhão, mas o que aprendi foi-me útil e ainda hoje o é. Na altura deu-me para fabricar brinquedos para mim (barcos de guerra de madeira com canhões móveis) e hoje dá-me para pregar pregos, mudar torneiras e coisas assim (que a minha mulher não leia isto, que fica logo a dizer que eu não faço nada - são opiniões, temos de ser tolerantes).

E permitiu-me também chegar a casa muitas vezes com um ar mais crescido, a cheirar a limalha e a serradura e portanto com autoridade suficiente para trocar impressões adultas com o meu pai sobre alicates, chaves inglesas e lixas nº 3.
Gostei.

11 - Pensar

Sonho com um escola onde os putos possam chegar a casa e ensinar aos pais o b-a-bá da civilidade. Isso parece-me possível. A inversa, menos.
Ensinarem por exemplo a não deitarem o lixo para o chão, a não trancarem o vizinho no estacionamento, a pararem nos stops ou mesmo, coisa tão difícil, a apanharem o cocó do cão (que merda!). Como é que se ensina isto na escola? Só com professores que professem estas convicções. Quase tudo depende dos professores.

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Escola, sítio de pensar. Uma escola que pelo menos pense para que diabo a escola deve servir. Uma escola não automática.

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Podem crer que é o que mais me magoa. Ter passado tantos anos na escola e não dispor de instrumentos, treino, conhecimento, para poder pensar um pouco melhor. Eu nem devia falar nestas coisas já que são muito difíceis de explicar e muito menos nestas alturas. Os do liceu ainda tinham uma cadeira de Filosofia, enquanto que a nós, alunos de escolas secundárias, estava claramente destinado apenas um ofício (empregado de escritório, serralheiro, montador electricista) a caminho do qual se excluía a educação do pensamento. Mera continuação da escola primária.
É claro que a liberdade de pensamento e o exercício do pensar eram contrários à natureza do Estado Novo. Já passou, não se fala mais nisso. Mas agora, agora no séc XXI, o que fazemos nós nesse domínio? A mim parece-me um erro trágico, um prejuizo irremediável não aproveitarmos um pouco melhor as meninges. Claro que não é fácil, nem imediato, demora muitos anos, aprende-se, treina-se – teria de começar na Escola. E não estou a falar em tirar cursos ou mestrados.

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É preciso distinguir entre liberdade de pensamento e liberdade de expressão.
Mais sarrafada menos sarrafada, a segunda liberdade está razoavelmente adquirida, acho mesmo que foi a melhor das aquisições do 25 de Abril. Mas a primeira, a liberdade de pensamento, a liberdade daquilo que flui ou não flui no sótão e no vozear da cabeça de cada um...
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A educação condiciona o grau de liberdade de pensa- mento. A escola que tivemos, beata, censória e obscurantista, seguramente que deixou nos nossos engramas algumas peias (poias).


[Da Exposição da Emídio Navarro. Uma fotografia extraordinária]


Como se faz uma escola que favoreça a liberdade de pensamento? Não digo que a tolere, digo que a favoreça e estimule.
Tenho para mim que os portugueses nunca foram muito dados ao pensamento. Com o devido respeito, só se lhes conhece um pouco mais de profundidade quando estão em fase de luto por qualquer coisa. Até já nos habituámos a confundir tristeza com reflexão. Antigamente falava-se no Português Suave, aquele ser levezinho que nunca queria aprofundar muito as coisas. O certo é que não temos na nossa história filósofos de nomeada.

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Seria bom que a Escola, qualquer escola, tivesse como uma das suas preocupações principais viabilizar, tentar, promover o exercício de pensar. Há neste momento por aí imensa gente interessante a escrever e a dizer coisas interessantes. Mas a generalidade são brilhantes ideias de circunstância, duram uma conjuntura, algumas até representam meros pacotes de pronto-a-pensar recém importados. Acho que pelo contrário, a Filosofia… Não sei como se faz. [Senhores pedagogos ou a quem interessar.]

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Talvez que não concordem comigo. Então permitam-me dois ou três exemplos.

Somos ou não somos aquele povo que, endividado e pobre, com uma Justiça anti-País e impraticáveis listas de espera, oncológicas e outras, mesmo assim se meteu a fazer 10 novos estádios de futebol? Que os governos tentem fazer destas coisas, enfim, já sabemos que o populismo ganha eleições. Mas mau, mesmo muito mau, foi que a este populismo dos governantes tivesse correspondido uma onda de júbilo popular, nacional.

Bem pode o ainda Presidente da República, Dr Jorge Sampaio, clamar por mais autoestima. Como se a autoestima não devesse nascer apenas da obra feita, do tino, do rumo colectivamente assumido, do orgulho de sermos qualquer coisa que objectivamente valha a pena ser. Só se fôssemos completamente néscios ou drogados é que neste momento poderíamos ter autoestima (a nossa falta dela é ainda uma esperança, um sinal de aderência à realidade).

Lembram-se da procissão que se fez na Ponto Vasco da Gama acompanhando a Selecção Nacional de Futebol? Meteu carros a apitar (mete sempre carros a apitar), barcos no rio, lenços, adeuses. A nossa autoestima está dependente de uma defesa do Ricardo ou de um golo do Petit. Valha-nos Santo Eusébio (da Silva Ferreira) que qualquer dia lá andamos nós outra vez a pôr bandeirinhas à janela, essa versão laica da velinha acesa.

Pensamos, nós? E costuma ser na escola que a atitude se desenvolve ou não.

E a OTA e o TGV Lisboa-Porto? Por que não nos indignamos? Porque não ouvimos pessoas como Silva Lopes, Miguel Beleza, Medina Carreira, entre outros? Não sei se os meus amigos são dos que pagam impostos ou dos outros. Em todo o caso é o País que vai ao fundo.
E a Regionalização, que há-de vir, nem que tenha de mudar de nome, com os seus vice-reis, Norte, Centro, Sul? Que vómito!

Outro exemplo, agora respeitante ao futuro.
Alegremente fomos destruindo grande parte do recorte da costa algarvia. O que não nos parece incomodar grandemente, pelo contrário desde que lá tenhamos um time-share qualquer. Seguir-se-á a costa alentejana, é uma questão de tempo. Se a água do mar no Alentejo fosse menos fria já haveria hotéis na linha do horizonte, assim demora um pouco mais mas lá chegaremos (vejam o caso de Vila Nova de Milfontes, no que aquilo se tornou). E a culpa, sempre abstracta, será obviamente das “pressões” a que os municípios são sujeitos e da necessidade de “desenvolvimento” (1).

Pois bem, temo que a essas destruições se siga agora uma outra, (não sei qual a sua extensão), a da paisagem da serra portuguesa, a começar pela minhota. Com a história das “energias renováveis” preparamo-nos para instalar ventoinhas onde hoje são serras, céu, núvens, terra. E a seguir, como aquilo dará apenas uma pequena percentagem da electricidade necessária e o petróleo anda perigoso, a seguir virá o lóbi do nuclear – até já dá para percebermos quem vão ser os seus comissários políticos.

Nada tenho contra o eólico, pouco tenho contra o nuclear, tudo tem prós e contras. Alguma da energia que estou neste momento a consumir até vem de centrais nucleares. E vivemos paredes meias com uma. O que pretendo então com todo este arrazoado aparentemente tão distante da Emídio e da Escola? É que entendo que enquanto Povo devíamos andar a discutir o nosso futuro energético, venha ele a ser o solar (olimpicamente ignorado), o eólico, o nuclear, as marés, etc. ou vários. Discutir, pensar, ouvir os mais informados, colher experiências alheias. E decidir. Mas ANTES, ANTES de estragarmos a paisagem, neste caso do Minho, ANTES!

O Ambiente e a Paisagem são temas demasiado importantes para estarem apenas nas mãos dos políticos, ainda que eleitos.

Os Suíços, por muito menos, referendam. Nós sujeitamo-nos. Pensamos, nós?

Estou pessimista? Pois estou. Quanto o marketing nos vier falar das Wind Farms, assim em inglês para português ver, sempre quero ver quem resiste. Não temos nós na sabedoria popular o lema de que "o resto é paisagem", querendo com isto significar que esta não vale nada?

Um povo que pensa pouco e tarde é um povo que será sempre apascentado. Um povo crítico, com direitos, é-o desde a Escola, necessariamente. Que fazer?, já perguntava o outro.

A propósito, sabem dizer-me se esta questão das ventoinhas e da paisagem do Minho é ao menos debatida nas escolas do Minho? Ou só os KW/h ?

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(1) Espero que acreditem que não tenho percentagem. Aliás nem conheço o autor. Mas deixem-me fazer publicidade. Há poucos anos saiu um livro que vos recomendo vivamente. É do fotógrafo João Mariano e chama-se “Lugares Pouco Comuns”. Tem fotografias espantosas de uma costa espantosa, a do chamado SW Alentejano. Vejam. Mais vale este livro do que mil discursos autárquicos em prol do ambiente e blá blá blá. Vejam porque qualquer dia pode ser passado.
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Sunday, March 05, 2006

12 - Escrever

Em abono desses tempos e da atitude das escolas: Escrevia-se tendencialmente melhor. Dar erros era feio, denotava analfabetismo.
Aprendi a escrever razoavelmente logo na Primária onde tive a excelente professora Maria Rosa Colaço, mas mesmo na Secundária os professores tinham a preocupação de nos corrigirem as faltas.

Agora estamos mal, muito mal mesmo. Há licenciados que dizem “póssamos” e “há-dem” e escrevem “estives-te”, “envias-te” etc.. O "haverão" é de sempre.
Há quem chegue a Mestrados e a Doutoramentos escrevendo arrazoados que mal se percebe em que língua ou dialecto se encontram redigidos ou que ideia pretendem veicular. Já me têm perguntado o que quero dizer com tal ou tal nota, só porque não a escrevi no léxico mínimo para estrangeiros.

Ainda ontem me telefonou um engenheiro informando-me que um determinado ficheiro tinha um vírus e que por isso estava retido na pasta da quorantina (quarentena).

[Senhores professores: Não interessa se são de Electricidade ou de Inglês, de Contabilidade ou de Educação Física, de Electrotecnia ou de Informática, por favor ajudem os vossos alunos a escrever em Português, esse ar que ou respiramos ou não saberemos quem somos. A menos que não saibam fazê-lo, o que remete para outra questão. Dá trabalho, pois dá. E bons resultados, também].

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Nem tudo é mau nesta matéria. Há razões para algum optimismo nesta questão do Português. Deixem-me contar: Vi recentemente na TV um senhor lá no Norte a explicar como fazia a reciclagem de computadores. E a certa altura explicou onde ficava a Madre-Borde (mother-board). GENIAL!

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Fico sempre agradecido quando vejo russos, ucranianos e outros a estudar afincadamente o Português. Tenho muita esperança nos nossos imigrantes.
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Saturday, March 04, 2006

13 - A Escola, as escolas

No outro fim de semana esteve cá o nosso amigo Henrique, professor de futuros professores. Como sempre e por muitas voltas que a conversa dê acabamos por cair na Escola e na discussão das razões pelas quais algumas têm peso, história, credibilidade e memória.
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Você andou onde? No Liceu Camões. Ah!
E você? Na Fonseca Benevides. Ah!
E tu? No Maria Amália. Ah! Sim.
E nós? Na Emídio Navarro. Fixe!

Friday, March 03, 2006

14 - Professores que ficam

Houve professores bons, professores maus e outros assim-assim. E sem ligação com esta distinção houve professores que vão ficar na minha memória e outros não.

Dos professores que vão ficar comigo tomo a liberdade de destacar dois a quem eu gostaria de deixar uma palavra de reconhecimento. E nisto cometo muitas injustiças, por omissão.

Ao professor César, de Inglês, um gentleman, que me ensinou que para podermos aprender seja o que for temos de ter um mínimo de organização. E ma obrigou a ter: Chamou a minha mãe, mostrou-lhe a desordem dos meus apontamentos, obrigou-me a começar do zero. Passei as férias do Natal a refazer o caderno. E a seguir comecei a aprender inglês. Ainda hoje uso regras e mnemónicas aprendidas com o professor César, O Teacher.

E queria agradecer à senhora professora Maria da Saudade Arezes, professora de Português e de Francês, que para além das matérias do programa nos ensinava também, quando podia, Cidadania.

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Que bom terem-me ensinado três línguas, a minha, o francês e o inglês.

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Da exposição da Emídio

O carinho que eu votava aos livros The New English Primer e Pierrot dans le Commerce vinha destes professores. A eles deve retornar. Não davam aulas, eram Professores.


Thursday, March 02, 2006

15 - O tempo

A minha memória anda esquisita, já não é o que era, só funciona para certas coisas e com critérios que desconheço. O que por vezes me deixa em dificuldades. No almoço chamei Neves ao Soares e Carlos Alberto ao Simão. Por isso é que ele não me respondia, até pensei que fosse surdo. As minhas desculpas.

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Se a alguns de vós perguntei o nome a outros tive mesmo de ser apresentado! Que vergonha!

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Como te chamas tu, desculpa lá a pergunta? Eu? Eu sou o Sevilha, pá! Não te lembras do Sevilha, pá?! Exacto, exacto, só o Sevilha falava assim, confere!

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A vários procurei ler o nome na silhueta, no modo como gesticulavam ou se sumiam, nos pequenos gestos, na voz, nas suas diversas e definitivas assinaturas.

Durante todo aquele tempo do almoço fui olhando para vocês, para o retrato de turma que trazia comigo e para o que de vós recordo. Ver tudo isto sobreposto, em triplicado, em derradeira paralaxe.

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Sensação estranha, sensação estranha. O tempo é um desfocador.

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Depois do almoço raspei-me durante uns minutos, agarrei na máquina e fui revisitar a Emídio, sozinho. Andei por todo o lado sem que ninguém me chateasse. E dei por mim a completar o perímetro da escola em pouquíssimo tempo. Eu já sabia que as escolas nestas alturas encolhem, nunca mais têm a extensão que tinham quando éramos pequenos, mas que diabo, até parecia que andava no interior de uma maquete. Já tinha dado por isso no Ginásio, agora tão pequeno.

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A porta do anfiteatro da C-3 estava fechada e o número da sala mudado. A C-3 prescreveu. Se calhar já nem é anfiteatro. [Senhores pedagogos, do que me lembro, as aulas mais produtivas deram-se em pequenos anfiteatros, não em salas planas e muito menos em grandes salas. Não sei se há aqui alguma lei oculta. À vossa consideração].


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Salas vazias, abrir esta ou aquela porta ao acaso.

A esperança de surpreender ainda um riso, um grito, uma impertinência, antes que se dissolvam para sempre no ar.




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No fim da volta fui olhando para as portas das traseiras das oficinas. Têm garatujas novas. O tempo é outro, ainda bem.
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