Saturday, March 11, 2006

04 - A deseducação sexual

Como se devem lembrar a escola não era laica. Obrigatoriamente tínhamos uma disciplina designada de Religião e Moral. Desses tempos recordo-me acima de tudo de que a tónica recaía na Moral e não propriamente na Religião (Católica). Confesso que teria preferido conhecer Religião ainda que a única possível, a do Estado, a que anulava e substituía qualquer outra.
Gostaria que não tivessem gasto esforços e tempo a tentar doutrinar-me e que os tivessem empregue no estudo das religiões do mesmo modo que história de arte ou música. Mas isso também não seria possível em aulas de R&M. Seria uma contradição em si.

Bom, voltando então à Moral era inevitável que o sexo fosse o seu alvo por excelência, o norte que conduzia o discurso de certas aulas.

Moral, condicionamento de comportamentos, deseducação sexual, chamem-lhe o que quiserem.

Isto não era explicitado mas era assim que funcionava. Esta deseducação sexual esteve entregue a uma tríade: Um padre, um médico e um professor. Os dois primeiros davam um programa, o terceiro foi sem querer. Explico.
Primeiro o padre. Não me estou a referir ao primeiro professor de Religião e Moral que tive ainda no Ciclo Preparatório, talvez padre talvez não, disciplina em que me ensinaram que uma dado caso de cegueira tinha sido resolvido com a queda certeira e providencial de um excremento de pomba sobre a vista necessitada. Um milagre, portanto. Aquilo divertiu-me e não me convenceu. Et pour cause, tudo o que se lhe seguiu me entrou por um ouvido e saíu pelo outro. Aos 10 anos é fácil de fazer.
Dessas primeiras aulas, já agora, recordo apenas um outro evento e por acaso muito agradável: Uma vez o professor rematou uma prelecção sua com a informação da fonte: “Segunda a Timóteo, versículo 3-16” (desculpem-me se não é assim que se diz, mas é exactamente assim que a recordo). E não é que nesse momento entrou ali, em carne e osso o Sr Timóteo com o livro de ponto debaixo do braço? Uma gargalhada geral a sublinhar mais um milagre desta vez à nossa medida.

O Sr Timóteo era um gajo porreiro, mandava na gente sempre bem disposto. E por isso o quisemos na fotografia de turma.

Regressando à Deseducação Sexual: Falo portanto do segundo padre. Pessoa simpática, homem afável no trato e demonstrando viva simpatia por nós. Não é bem dele que falo, é mais do programa.
Acontece que servia grandes prédicas quanto à natureza “nefanda” (palavra aprendida nessas aulas) do sexo não reprodutivo, do sexo não estritamente "necessário", "do sexo de não casados". Havia no ar, nessas aulas e noutras, havia nesse tempo em suma, uma preocupação latente de inculcamento da culpa como princípio condicionador de comportamentos. Privilegiava-se a obediência a códigos de conduta exteriores ao indivíduo e à sua responsabilidade pessoal, a que aliás não se apelava. É a minha leitura, reconheço que existem outras.

Por acaso constato hoje que quando se referia à recomendada relação sexo-casamento a parte "sexo" despertava a nossa atenção, a parte "casamento" népias.
Penso, assim à distância que foi tempo perdido.

Bom, agora o médico: Dava uma cadeira chamada Higiene. Ensinou algumas coisas úteis acerca de doenças, vacinações, ressuscitação cárdio-respiratória, garrotes para homorragias e coisas assim. Que eu apontava no caderno e tentava aprender.
Mas um dia quando o programa chegou ao aparelho reprodutor masculino (o feminino não existia) logo ali chamou à colação todo um rol de doenças venéreas. E deste modo patologizou o sexo e seus apêndices naturais. E com que requinte: Trouxe para a aula uns instrumentos cirúrgicos, tipo cânula de aço inox. Explicou que eram destinados a subir pela uretra. Dentro destas cânulas deslizariam depois umas lâminas cujo corte visava permitir a micção a certos doentes mais entupidos. Com nojo e horror lá íamos aguentando aquilo.
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Deixem-me contar-vos esta, que se calhar só voltamos a falar no próximo cinquentenário, em 2056, e eu nesse dia posso estar com muito sono: Ia a aula quase terminada e versava-se a reprodução. Um colega nosso, dos maiores, o B., apresentava nesse dia uma estranha e crescente incomodidade, como se uma grande preocupação lhe toldasse a atenção. No fim, já com a campainha a tocar e a malta a fechar os cadernos, encheu-se de coragem e perguntou muito alto, sem conseguir contolar a voz, se as mulheres podiam engravidar pela boca. A resposta veio e teve o condão de o acalmar instantaneamente. Ainda o pude ver a sair porta fora muito muito aliviado.

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Dessa disciplina de Higiene retive os termos “gonorreia”, “cancro mole” e “cancro duro”. Cancro, nesse tempo, era quase sempre incurável, estão a ver o clima.

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Finalmente o professor. De História. Era apenas um homem muito perturbado a necessitar de tratamento. Falava em coprolalia constante, transformando todos os eventos da História em histórias de cama, prostituição, incesto, faca e alguidar. Um puro caso patológico ou de mau recrutamento docente. Dessas aulas retenho apenas o nome de Ana Bolena. (Para que falo eu nisto? Secreta esperança que não se repita).
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Conselho Pedagógico não sei se havia, se já se usava. Se sim, não funcionou.
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É curioso constatar que licenciosidades destas poderiam ter tido um efeito contrário às aulas de R&M ou de Higiene, pela descontracção aparente, pelo registo mais livre. Pelo contrário, acabaram por apontar na mesma direcção, a de sexo como coisa indigna. Natural e indigna.

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O que nos valia era o nosso poder subversivo, destruidor. Com o professor de História riamo-nos alarvemente e passávamos à frente. Com o padre, eu pelo menos concentrava-me no seu cigarro. Ele fumava nas aulas (sim nas aulas) uns cigarritos do tipo Provisórios ou Definitivos, marcas baratas, sem filtro. E como falava falava falava acabava por se esquecer de os chupar. De modo que a cinza lá ia crescendo. A certa altura, eu e outros em patente ansiedade, já só nos preocupávamos em saber se a cinza se iria estatelar no estrado, na mesa ou na primeira fila. Esta preocupação e outros pensamentos mais importantes faziam com que a aula se passasse.

Uma vez, com muita piada, defendeu convicto o tabaco dizendo que tinha vitamina PP. Alguém lá atrás adiantou imediatamente a palavra "papel". Era assim.

Acho que uma vez ele (ou o anterior professor, não sei já) nos quis hipnotizar. [Senhores do Ministério, não há uma lei contra estes comportamentos? É que do meu conhecimento são já vários os casos de padres que gostam de fazer esta gracinha e com isso evidenciar pretensos poderes ocultos. Faz parte de um programa? Isto é aceitável? A mim parece-me tratar-se de falta de respeito para com miúdos].

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O tratamento dos domínos da chamada Educação Sexual era abordado pelo lado do inconsciente, não da informação. Procurava-se condicionar comportamentos, inculcar a ideia de doença e de pecado, havendo para cada uma destas disciplinas o seu mestre especializado. Ainda deve ser assim em muito lado.

É por estas e por outas que por vezes penso que é bom que a Escola não tenha na vida de crianças o peso e a importância que já teve e que os jovens sejam formados como são, a partir de referências múltiplas e pouco controláveis, sempre discutíveis.

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Desses tempos tão cinzentos e vis foi a Escola tão vítima quanto nós. Em tudo o que aqui digo tenho isso presente. Mas foi na Emídio que aconteceram, não há volta a dar-lhe. É também isso que recordo agora que a visito. Está escrito nas paredes.

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Havia uma escada para as raparigas e outra para os rapazes, alas separadas. Qualquer troca de palavras ou bilhetes dava direito a que nos tirassem os números para uma admoestação qualquer.

Enquanto isso, "lá fora" explodiam os Beatles. Primeiro na Radio Luxemburg que ouvíamos em Onda Média, depois, incontroláveis, na nossa telefonia. E cantavam "Please please me". A música foi uma higiene.

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Diz-se que "de pequenino se torce o pepino". Pensei durante muitos anos que isso até era uma coisa boa, hoje nem sempre penso assim. Acho que a escola deve ser o mais possível neutra para que cada um possa evoluir na medida das suas capacidades e circunstâncias, i.e. que a escola não nos modele exageramente. Daí gostar da escola laica (escola agnóstica, a que se interroga, melhor dizendo).
Pensava eu nisto quando tropeço numa revista que não conhecia, O Tripeiro, em número razoavelmente dedicado aos 100 anos do nascimento do Professor Agostinho da Silva. No página 30 faz-se um pequeno elenco de pensamentos seus e a certa altura diz-se:

«O tal imenso desafio que se nos apresenta é o de educar o povo, insistindo em que educar não é levar ninguém a ser isto ou aquilo, não é tentar influir de qualquer modo em sua orientação futura, mas dar meios de expressão à sua capacidade criadora e de comunicação, quer ela se exerça lendo e escrevendo, quer manualmente num ofício, e sem que se separe uma actividade de outra.»

1 Comments:

Blogger Joao Augusto Aldeia said...

Recordo-me bem desse professor de Religião e Moral que falava do sexo de tal forma que o tornava repelente. Avisou-nos solenemente que a masturbação poderia provocar a impotência e, até, a loucura.

Seria mesmo médico? Que faria um médico a dar aulas de Religião e Moral? Se acaso era médico praticante, lamento a sorte dos doentes.

Quanto ao professor de História, se é o mesmo de que me recordo, tenho boa impressão dele. Era divertido, contava muitas anedotas, e acabava por ensinar história (o livro era bom) de modo descontraíso.

Tinha uma alcunha pesada, que não me atrevo a reproduzir. Aconteceu que um dia em que havia um abiente bastante descontraído na sala (como quase sempre) e em que se falava de alcunhas de professores, esse professor exigiu saber qual era a dele. Alarme na sala: alguém seria capaz de lhe revelar a barbaridade da alcunha que lhe calhara?

Felizmente que um colega de pensamento rápido resolveu o problema, inventando no momento uma alcunha alternativa: o "Larachas". O que é curioso é que no livro sobre a Emídio escrito por Pinto da Costa é essa alcunha de recurso, o "Larachas", que vem referida.

Recordo-me que um dia, falando sobre Cleópatra, o professor saíu-se com uma das suas piadas fortes: disse ele que a Cleópatra tinha "aquilo" maior do que o Arco da Rua Augusta. Veio a sala abaixo com gargalhadas.

Mas algo deve ter transpirado cá para fora porque, na aula seguinte, muito sério (coisa rara) o homem explicou-nos: quando disse "aquilo", referia-se à alma; a Cleópatra tinha era uma grande alma!

E se calhar até tinha...

8:40 AM  

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