Saturday, March 11, 2006

06 - A Malta


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*Luís Filipe, Jaime, Luís Fernando, Piedade, Álvaro, Augusto, Madeira, Valério, Gil, Carlos Branquinho, Ganhão e Sr Timóteo
* Durão, Renato, Castanheira, Agostinho, Brighton, ???, Chouriço, Sota, Nunes de Oliveira, Dores, Prazeres,
* António Joaquim, Bandeira, Martins, Jorge, Caldeira, Guerreiro, Lima, Gil, Vieira de Almeida e Reis Duarte



Devo à minha mãe o ter guardado tão cuidadosamente esta fotografia.


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O melhor do mundo foi e será sempre a malta. Aquela maltosa indecente, aquela gostosa trupe que ninguém tinha mão nela.

Alguns factos: Nunca fui roubado. Nunca me bateram (andar à pancada é uma coisa, agredirem-me teria sido outra). Os matulões (o Paiva, o Luís Fernando, o Zé Colmeia) protegiam os mais pequenos. Não me lembro de ofensas graves. Lembro-me sim de uma amizade latente, intrínseca ao facto de sermos colegas, mesmo que de outras turmas, companheiros. Que bom. Navalhas só um ou outro canivete para descascar a fruta.
Um grande abraço para vocês, sacanagem geral.


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Gosto muito de olhar para esta fotografia eu que não a via literalmente há décadas. Acho que com um pouco de cuidado e tentando afastar a emoção pode-se ver em sucessivas camadas as nossas particulares origens, as nossas famílias, as suas prováveis profissões, os sonhos dos nossos pais.


Olhemos para o nosso cabelo, o sorriso ou falta dele, o ar que púnhamos, os sapatos que calçávamos. Nisso tudo veremos o que fomos e a Almada de 1961. Terra de imigração interna acelerada, muita dela de camponezes em proletarização que procuravam em Lisboa, no Seixal, no Barreiro uma nova vida. Em minoria, alguns empregados de escritório e um outro dono de mercearia ou mesmo pessoa mais abastada.


E nós, os seus retratos, posando para o retrato. Está lá tudo.


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(Já não fazia ideia de quão putos nós éramos).

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Fomos para a escola com um pedido implícito dos nosso pais: "Que não fiquem analfabetos". Acho que se conseguiu, que a Emídio Navarro conseguiu.

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Bom, deixem-me mudar de registo, arregaçar as mangas e tentar resolver aqui uns pequenos problemas que tenho atrasados. Contabilidade pessoal.


Da malta vou escolher apenas três, por circunstâncias para mim muito especiais que certamente me redimirão da iniciativa. E sem desconsideração por todos os outros a quem (comovidamente) dou um abraço.


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O Lima
Com este eu quero ajustar contas, mesmo sabendo que por este meio ele não se pode defender. Santa paciência, hoje não há contraditório.
Não o vi no almoço se não tinha-o feito logo ali, assim vai em diferido, em câmara lenta, como na bola. É do Lima que falo.

A fotografia talvez que não lhe faça juz completamente. Quem a vê dirá que se trata de uma criança. Sim, claro, mas. Não nos deixemos iludir completamente pelas aparências.


Atenção que este gajo era especial (e espero que continue a sê-lo). Inteligente e marrão - o que era mais que suficiente para que concitasse pequenas irritações alheias, digamos que o Lima era um alvo fácil para as nossas pequenas crueldades.


Tive com ele muitas discussões. Era seu amigo, dos mais chegados. Simplesmente discutíamos. Vamos ao ajuste de contas, que a discussão ficou a meio.


O problema do Lima é que em vez de jogar à bola, lia. Em vez disto, daquilo e daqueloutro, lia. Em vez de tudo, lia. E à medida que crescia mais se lhe entranhava o vício. Lia, informava-se e opinava. E como se não bastasse decidia-se a emprestar-nos livros, impingia-nos autores, metia-nos recensões debaixo do braço, suplementos literários, revistas, tudo o que tivesse letras. Chegava a levar-nos para a Biblioteca da Cooperativa Piedense. Por aí podem vocês ver do que a casa gastava. E ao longo daqueles curtos anos foi-nos pegando o vício de tal forma que posso considerar que devo em parte ao Lima o facto de ter conhecido o Samuel Becket, o O. Henry, a Luiza Neto Jorge, o Jorge Luís Borges, o António Ramos Rosa, o Carlos Oliveira, a Ana Hatherly, etc. etc. etc.. E tudo isto na idade que vale a pena.

E íamos a exposições. Batíamos as galerias de arte todas de Lisboa (em Almada não havia, como hoje não há). Lembro-me muito bem de ter passado longos longos minutos frente aos sprays do Noronha da Costa, coisa que se faz bem a qualquer ser humano, então a um puto de 13 ou 14 anos aluno do Curso Geral do Comércio em Almada...


Ao Lima (e a outros) ficámos a dever algumas programações do Cine-Clube da Cova da Piedade, aquelas sessões de verão, na esplanada. Por lá passaram o Rossellini, o Antonioni, ...

Numa das últimas vezes que o vi (já lá vão muitos anos, ainda antes do 25/4) penso que andava o Lima a compor ou a distribuir uma revista policopiada a stencil (chamada Grifo?). E ainda não há muito tempo li um livro do Sam Shepard que me pareceu muito bem traduzido. Procurando o nome do tradutor encontrei um muito próximo do que lhe conheço. Foste tu, Lima?


Nunca lhe agradeci estas coisas todas, queria fazê-lo agora. Obrigado pá. Um grande abraço.
Pronto, era só isto.

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O Gil
Amigo e parceiro de muitos anos. Sempre muito vem disposto. Bom na Matemática e no Bilhar Grande.
Não estou a brincar. Sempre achei o bilhar uma fonte de ensinamentos para a Geometria, a Física e a Astronomia, pelo menos. E descontrai.
A sensibilização para a inércia, para a velocidade, para o ângulo, a reflexão, a trajectória, a colisão e a força resultante... Há aulas de Física que podiam ser dadas no salão de bilhar mais próximo e com a vantagem da experimentação, das imperiais e dos tremoços.


Para quem não conhece, garanto: O bilhar tem uma elegância formal próxima da da geometria.


Ora o Gil tinha imensa facilidade em todas as disciplinas. Mas na Matemática e no Bilhar, aí então brilhava. No Bilhar Às Três Tabelas, para ser mais preciso, assim escrito com maiúsculas como este jogo merece ser mencionado. Nesta disciplina em que o quadro é de pano verde e também se usa giz. Era um craque em qualquer estádio das várias aldeias bilharísticas que existiam em Almada: Café Central, Nevada, Crisógono...


Eu lá ia dando umas tacadas no snooker, sempre eram mais bolas, muitos buracos, mais propenso ao acaso e a um certo caos. Preferências.


Do Gil deixem-me contar esta, para vocês verem como tenho razão: Houve um ano em que tivemos um excelente professor a Matemática. Para vergonha minha não me lembro do seu nome. Era coloquial, o programa avançava e sobrava sempre tempo para falarmos para além da disciplina. Houve um dia em que extra-programa decidiu introduzir-nos no sistema binário. Lá explicou que dispúnhamos apenas do zero e do um, etc. etc.. E a certa altura, depois de nos ter explicado sumariamente o tema quis confrontar-nos com algumas questões:


Primeira: Quantos são 0+0 no sistema binário?

Lá dissemos que aquilo só podia ser zero, fosse em que sistema de numeração fosse, etc. e tal. Muito bem.

Segunda questão. E 0+1? Lá acertámos de novo. Óptimo.


Finalmente a pergunta fatídica: E 1+1 ? Pois só o Gil disse correctamente “10” (que neste caso se lê “um zero base dois”). Estão a ver, estão a ver, um gajo destes tinha forçosamente de ser bom nas 3 tabelas.


Um grande abraço, pá.


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O Álvaro
Deixei o Álvaro para o fim. Porque me custa e não tenho palavras. E não há alternativa às palavras.
Como eu gostaria de te poder perguntar: Que é feito de ti, pá?


Para quem não o conheceu posso dizer que o Álvaro não era como nós. Nós éramos muito ou pouco inteligentes, cada um à sua maneira, mas razoavelmente toscos. Enquanto isso, o Álvaro era brilhante. Nos pontos só tinha vintes e dezanoves. Abaixo disso nem se dignava olhar para a folha do exercício, ficava ofendido consigo próprio e não se perdoava.


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O Álvaro que quando chegou à Primária já sabia ler.

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Nós estudávamos a matéria pelos livros, ele escrevia a matéria que muito bem entendia, directamente da sua cabeça para pequenos livros.

Que será feito dessas micro-enciclopédias que ele escrevia, ilustrava e encadernava? Minúsculas condensações de conhecimento onde era possível encontrar a descrição orográfica do Rio Nilo, a altura do vulcão Popocatepetl, a distância Terra-Sol, o método de conversão KM-milhas ou graus centígrados-Fahrenheit,...


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Só para terem uma ideia: Uma vez no anfiteatro da C-3 estava a decorrer uma aula de Ciências quando o Álvaro, subitamente saído de outro planeta, se levanta e aponta o dedo indicador à professora. Ele tinha um indicador comprido e curvo, como na Criação de Adão do Miguelângelo e espetava-o no peito das pessoas em interpelações sem aviso prévio. Desta vez dispara muito simplesmente a seguinte: Qual é a diferença entre fusão nuclear e fissão nuclear?

A pergunta era honesta, ele estava mesmo interessado em saber. Mas pobre professora.


*
Com o Álvaro tinha em comum a paixão pela astronomia. Deitavamo -nos de costas no chão olhando para o céu e fazíamos a revisão da matéria dada pelo cosmonauta Gagarine. Tanta vez.

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Por vezes deixava-nos muito preocupados. Discutia com o professor de Inglês e abalava porta fora. E por isso somava faltas.
Esteve quase a chumbar por faltas disciplinares o aluno mais brilhante da sua geração.
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Sempre achei que o Álvaro estava um pouco a mais em todo o lado, um não caber no ar que tinha para respirar. Havia nele o comportamento de um dextro que se movia num mundo feito para canhotos.
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Tenho mesmo muita pena de não te poder abraçar. É o que mais me custa nesta história dos 50 anos da Emídio.
*
*

Lembro-me muito bem da voz do Álvaro, ouço-a.

Posso por isso perguntar-me: Que é feito de ti, pá?
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