Saturday, March 11, 2006

07 - A Bufa

Impossível não falar da Bufa, vulgo Mocidade Portuguesa, ou vice-versa, tanto faz. Um Estado dentro do Estado. Uma segunda Escola dentro da Escola. Uma coisa triste que levávamos a brincar.
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Eles tinham aeromodelismo, tabuleiros de xadrez e filmes dos astronautas (americanos). Eu como gostava destes três assuntos uma vez apanhei a sala da Bufa aberta e resolvi entrar. Não eram passados 10 segundos quando me berraram uma qualquer ordem de expulsão, marcial. Nunca mais lá entrei. Mas nos curtos momentos em que lá estive pude ver e lembro-me com nitidez, que havia uma secretária, digamos, de Director, com bandeirinhas, ofícios e carimbos. Não me admirava que em certas matérias o comandante daquilo mandasse mais que o Director da Escola ou que pelo menos este tivesse que afinar a voz pelo diapasão que aquele representava, e sem fífias.






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Da Exposição

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A inscrição na Mocidade Portuguesa era obrigatória, isto é, automática. De modo que aos sábados à tarde lá andávamos nós a marchar num ridículo simulacro de pelotões, regimentos e companhias. Destrambelhados soldadinhos de chumbo.


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Mais uma das minhas raizes quadradas por resolver: Por que razão na Bufa as ordens eram sempre dadas com sotaque algarvio? “Esquerde, direite, esquerde, direite, esquerde, ...., esquerde, ...., esquerde..., esquerde...”.

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Havia uma espécie de mandamentos da Bufa que tínhamos de saber de cor. A todo o momento podíamos ser interpelados por algum "graduado" posto o que tínhamos de estar em condições de desbobinar a ladainha, mais ou menos como hoje em dia temos de exibir o bilhete do Metro se o revisor nos abordar. Nunca os aprendi, nunca fui apanhado.

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Um dia o Director entrou numa aula, de rompante como era seu costume. Professor e alunos saltaram como uma mola. Com o Director vinham duas pessoas, julgo que do Ministério. Informam-nos que vamos ser medidos. Exactamente. E passou a explicar que sermos membros da Mocidade Portuguesa implicava uma certa dignidade que não estaria a ser respeitada - tínhamos de passar a usar farda! E para isso iam tirar-nos as medidas.

Confesso que a coisa animou a malta. Nenhum de nós tinha farda, andávamos todos a marchar na mais perfeita pinderiquice. Colegas meus havia que usavam sapatos só porque uns anos antes tinha passado a ser proibido andar descalço. Eu próprio andava de botas de borracha para poder atravessar o inverno de lama da Quinta dos Caranguejais, sítio onde se juntavam três bairros de lata. Estão portanto a ver o aprumo daquela tropa fandanga. Portanto tínhamos de passar a andar de farda, isso de se andar de bracinho no ar à civil ia acabar.


Nos dias que se seguiram muito especulámos nós sobre o significado de cada um dos componentes da farda, toda ela cheia de berloques e cores simbólicas de tudo e de nada. O cinto, esse, tinha um “S” que parece que queria dizer “Salazar” mas que um colega nosso mais douto na matéria, talvez mesmo já um estudioso e candidato a uma carreira no ramo (já vamos ver o destino que teve) nos elucidou significar “Servir Sempre Salazar”, três esses valiam mais do que um.


O problema é que o tempo foi passando e as fardas não chegavam. Pelo contrário, um belo dia o que chegou à Escola foi a conta das fardas, que elas não seriam feitas sem que antes cada um de nós esportulasse a respectiva quantia. Lá em casa disseram-me logo que não havia dinheiro para mocidades portuguesas e que era assunto arrumado. Nas outras, o mesmo. Houve pais que ainda se deslocaram à Emídio perguntando se podiam pagar a prestações. Que não, que não podia ser. E a coisa entrou num estranho impasse até que esmoreceu e assim ficou.


Ficou assim, não: Houve uma única excepção, a do nosso colega mais letrado em Juventudes. Esse viu a sua farda ser paga, feita e entregue, um brinco. Mas nós é que beneficiámos com o facto. É que passou a ser um prazer muito grande tê-lo ali a desfilar no nosso seio, nós uns javardolas e ele todo aprumado tão diferente de nós, qual pardalito entre corvos!


Explico melhor: Diferenças destas dentro da mesma Companhia acabam inevitavelmente por provocar algumas reacções, nomeadamente verbais. Vossas Excelências se não estiveram lá não podem fazer ideia dos epítetos que surdamente lhe passámos a lançar enquanto aplicadamente volvíamos à esquerde e à direite sem que o Chefe de Quina nos ouvisse.

Para vossa ilustração vos direi apenas que as pequenas mensagens que os de samarra e camisola dirigiam discretamente ao colega de farda versavam, quase todas elas, o conceito genérico de fazedor de panelas, nas versões culta, popular e respectivas declinações. Regionalismos, vários e mui espontâneos, com etimologia no léxico de Porto Brandão, Mutela, Margueira, Pragal, Caramujeira, Costas de Cão, etc. etc.. Coisa elevadíssima.


Por acaso nada daquilo tinha intenção de ofender. Na segunda feira seguinte, já sem farda, éramos amigos outra vez.


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Muito mais tarde tive oportunidade de ler O Tambor, do Günther Grass. Há lá passagens que são isto mesmo, situações em que militarismo, estupidez e absurdo se parecem atrair e anular reciprocamente.

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A ordem final era a mais esperada: DES-TRO-ÇAR! E lá corríamos nós que nem uns doidos para longe de toda aquela insanidade a caminho da camioneta que nos levasse para casa, que o sábado estava quase no fim.



«Marcelo Caetano distribui fardas às novas Juventudes Portuguesas em cerimónia solene. 27-4-1942» Foto retirada daqui.

Quando uma vez por mês era mandado para o sacrifício do barbeiro aproveitava sempre para folhear os Séculos Ilustrados. E ali, sim, podia-se ver o que eram juventudes a sério. Em fotografias de grande dramatismo desfilavam as Franquistas que não só tinham farda como também espingarda e tudo e por isso evidenciavam um porte garboso, eram dignas dos seus maiores e defensoras dos sacrossantos valores da Pátria (letra e música da época).
A gente hoje ri, aquilo já passou, ou parece ter passado, mas a MP era um peça num puzzle sinistro que incluía a PIDE, a Legião, a censura, o Tarrafal e uma miríade de delatores um pouco por todo o lado...


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Quanto à Mocidade Portuguesa Feminina, confesso que nunca pensei muito nela. Pelo menos nunca ouvi a expressão que seria lógico que tivesse ouvido, Bufa Feminina. Para me informar melhor sobre o assunto perguntei à internet e ela respondeu-me com uma súmula interessante, aqui e os os Regulamentos aqui.


Vale a pena ler para perceber a época, antes que as nossas cabecinhas prescrevam de vez.


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Do hino da Bufa confesso que só aprendi as primeiras e a última estrofes. O resto trauteava. As primeiras rezavam assim:
« Lá vamos, cantando e rindo / Levados, levados, sim»
São versos que ainda hoje me permito aplicar a torto e a direito e com muita propriedade, podem crer. Muito útil.

Com o último verso é que arranjei uma pequena questão particular, uma daquelas raizes quadradas pessoais, das muitas que trago no bolso, que a vida não é fácil.

Diz a estrofe: «À Mocidade que passa». Ora eu tinha dúvidas sobre o verdadeir o significado da última palavra, ali inscrita no contexto que conhecia, mas aguentei-me e nunca perguntei a ninguém. Quando tinha de a cantar sentia-me sempre dividido sobre se estaria a subinhar o fenómeno do envelhe- cimento, da mocidade que passa para dar lugar a outras idades, se ao facto de termos a mocidade portuguesa sempre a passar, fisicamente a passar, nos recintos, nas ruas, nas paradas. É que naquele tempo a Bufa desfilava por tudo e por nada, passava debaixo dos nossos narizes fosse ele procissão (pegando nos andores) fossem beija-mãos a governantes, dias santos, etc.. Eles passavam mesmo. Praticamente não faziam mais nada.


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Um pequeno país que marcava passo produzia um outro, de miniatura, que fazia que avançava.
Hino completo aqui .

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O que aqui conto é apenas o mais risível. Não é o momento para coisas mais sérias, que também as houve. E mesmo assim se as conto, primeiro é porque existiram. Mais grave que esquecermos é fingirmos já termos esquecido. Em segundo lugar, conto ir amanhã ao Concerto da Emídio ouvir o Mozart e as harmonizações do Lopes Graça no Auditório que tem o seu nome.

Não se pode ir ouvir Lopes Graça e ao mesmo tempo esquecer ou desvalorizar.

Já agora: Quando o Fernando Lopes Graça soube que o seu nome constava de uma lista negra da RTP segundo a qual não podia ser filmado, escreveu uma carta aberta à televisão, publicada na Seara Nova, proibindo a estação de o filmar fosse a que pretexto fosse. A música dele é também disto que fala e é assim que eu a vou ouvir.
A Mocidade Portuguesa parecia uma fantochada juvenil mas não era.

2 Comments:

Blogger Joao Augusto Aldeia said...

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8:19 AM  
Blogger Joao Augusto Aldeia said...

Nos tempos da Emídio, nesses anos do final da década de 60 (seria em 1968 ou 1969) assisti a um extraordinário concerto pelo Coro da Academia de Amadores de Música, dirigido por Lopes Graça, na colectividade da Cova da Piedade.

Lembro-me apenas de uma das canções que ali ouvi:

"Os homens que vão p'rá guerra
Vão p'rá guerra, vão morrer.
Diz adeus a pai e mãe
Que vos não torno a ver

Os homens que vão p'rá guerra
Vão p'ra nunca mais voltar.
Diz adeus a pai e mãe
Que vos não torno a abraçar."

Havia uma tensão enorme na sala, que abarrotava de gente. Eu tinha 16 anos, mas sabia bem que se tratava de um espectáculo contra a situação política e que estava na fronteira do que o regime poderia tolerar. Isso, só por si, era emocionante.

Mas havia outra razão para me emocionar. A proximidade do recrutamento para a guerra era algo que nos assombrava a vida, pois, por muito politizada que fosse a população daquela zona, havia um sentimento geral de fatalismo perante a partida dos jovens para África: lá teríamos de ir para aquela espécie de lotaria com a morte.

Eu sei porque é que me lembro (apenas) daquela canção, passados tantos anos: ela transmitia exactamente o que eu profundamente sentia. Embora pudesse ser entendida como um "não" à guerra, a canção era essencialmente um grito de desespero perante uma maldição que parecia que iria durar para sempre.

8:20 AM  

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